Todos sabemos da resposta de Mallarmé a Degas. Quando o pintor confessou
o seu desejo de escrever poemas, dado que tinha muitas ideias, o poeta
respondeu-lhe que um poema se faz com palavras, não com ideias. Julgo
que neste tempo em que, de novo, as palavras parecem perder o seu
sentido – à custa de tantas ideias ínvias - é urgente lembrar que o
poema é trabalho de palavras. O poema é um exercício que concilia
reflexão, ponderação, fidelidade ao que as palavras, na sua
radicalidade, significam. W. A. Auden lembra-nos justamente que: um
poeta é, sobretudo, uma pessoa que ama apaixonadamente a linguagem. Amar
a linguagem é sinónimo de respeitar as palavras. Neste Dia Mundial da
Poesia, é esta a mensagem que gostaria de vos enviar, deixando claro que
o acto de escrever poesia não pode ser realizado levianamente, pois um
poema, em chegando ao leitor, pode ser potenciador da imaginação ou, por
ser pobre, um mero desfiar de ideias sem consequência. É contra essa
inconsequência do acto de fazer poesia que o poeta consciente do seu
trabalho se deve insurgir.
Neste tempo de novas indigências, a responsabilidade poética
relaciona-se, portanto, com a importância que devemos voltar a dar à
imaginação por meio da palavra. E nesse sentido a poesia não pode ser,
também ela, uma outra forma de discurso banal, a fingir marginalidade
para se dar ares de arte pobre. Essa hipocrisia é ainda uma forma de
pretensão. Se a poesia é arte pobre, é-o não por pactuar com a
puerilidade, mas por saber que o seu lugar é do lado das coisas simples,
claras e ao mesmo tempo desafiantes. A poesia é arte pobre porque não
pretende participar do comércio das palavras, não pode pactuar com a
corrupção da língua, manifestação da corrupção das ideias e
mentalidades. Neste Dia Mundial da Poesia convém dar a saber que uma
poesia que banaliza a própria linguagem é outra coisa, mas não é poesia.
Se não surpreende quem lê, não é poesia. Se não faz irromper o
estranhamento, não é poesia. Podendo ser simples, devendo rejeitar a
grandiloquência, a linguagem poética deve ter temperatura, uma
significação que dê ao leitor a possibilidade de estremecimento.
Em profundidade e em extensão a poesia é um acto de cultura. Essa
paixão da linguagem define o poeta como alguém que se afirma como
artesão (Sophia) e, por isso, celebrar a palavra de poesia é celebrar,
na verdade, todos quantos amam o homem, animal de condição verbal, ser
criador de palavras, e que corrompe a sua própria humanidade quando
corrompe a matéria através da qual se diz e diz o mundo. Neste tempo em
que, na política, impera o capitalismo das palavras, recordando Sophia,
cabe ao poeta resistir contra a deturpação a que frequentemente nos
conduzem aqueles que são adeptos da palavra prática, da palavra técnica.
A palavra de poesia afasta-se total e absolutamente desta época da
globalização fascizante, deste tempo de traição a projectos fundadores
da nossa identidade. A poesia esteve na rua em Abril de 1974. Tem estado
na rua contra aqueles que têm como único projecto a destruição da nossa
liberdade e das nossas condições de vida. Contra a superficialidade e a
ditadura do banal, que pode ser a palavra de poesia? Pode e deve ser
palavra artística, exercício de liberdade imaginativa, de associação
livre de sons, sentidos e experiências. Por isso ela é palavra perigosa,
pois cria sempre a possibilidade de uma heterodoxia.
Lembremos Ruy Belo: ao contrário da palavra útil, a de poesia
procura libertar-se (e libertar o Homem) da pulsão de morte que,
actualmente, nos ameaça, ora de modo subtil, ora de modo declarado.
Falo, para além do fetichismo tecnológico, da ditadura dos mercados, da
alienação publicitária, da obsessão pelas estatísticas. Mas também me
refiro a novas formas de totalitarismo: o emprego precário tornado algo
aceitável e até normal; a ideia de que todos teremos vivido acima das
nossas possibilidades... A responsabilidade, neste Dia Mundial da
Poesia, é também de ordem ética e não só estética. Devemos dar a ler,
nomeadamente na Escola, os nossos poetas, ensinar, com rigor e
entusiasmo, textos de quantos, inquirindo a linguagem, exaltaram o Homem
e a vida. Tudo isto porque é contra o Homem e a vida que a teologia
financeiro-político-bancária tem agido, seja em Portugal, seja na Europa
da oligarquia burocrática.
No fundo, celebrar o Dia da Poesia é celebrar a dignidade com que,
por meio da arte, celebramos «a fiel dedicação à honra de estar vivo»,
para lembrar Jorge de Sena. E não, não se veja aqui qualquer espécie de
serôdio romantismo ou de crença num qualquer poder xamanístico reservado
ao poeta. A poesia, é certo, continuará sendo o reduto de poucos. E o
poeta alguém que, apaixonado pela linguagem, procura responder à
ditadura da palavra prática. A poesia é, por tudo isto, um irrevogável: é
fiel ao facto de ser linguagem – linguagem que sabe dizer não quando se
atravessa o deserto de um mundo pautado pela lei do dar o dito por não
dito. É irrevogável, a poesia. E sabe bem o que isso quer dizer.
António Carlos Cortez
in http://www.spautores.pt/destaques/dia-mundial-da-poesia-21-de-marco-2
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